Alergia Medicamentosa

ALERGIA MEDICAMENTOSA

Pedro Carreiro Martins
Assistente de Fisiopatologia, Departamento de Fisiopatologia, Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa
Assistente Hospitalar de Imunoalergologia, Hospital de Dona Estefânia

DEFINIÇÃO

As reacções de hipersensibilidade a fármacos definem-se como efeitos adversos que surgem na sequência da exposição
a um determinado medicamento, tolerado por indivíduos saudáveis. Tal como as demais reacções de hipersensibilidade, podem classificar-se como alérgicas (caso exista um mecanismo imunológico na origem da reacção) ou não alérgicas (em situações em que exista um mecanismo não imunológico, sendo vulgarmente designadas de «intolerâncias»).

EPIDEMIOLOGIA

Apesar das queixas de reacções de hipersensibilidade a fármacos serem frequentes, a sua verdadeira prevalência não se encontra correctamente definida. Os resultados provenientes da aplicação de questionários sugerem que cerca de 8% da população se apelida de alérgica a algum medicamento. No entanto, é sabido que somente uma minoria o é realmente. Os dados provenientes de doentes hospitalizados sugerem que cerca de 15% sofrerão alguma reacção adversa a fármacos, estando a incidência de reacções alérgicas situada entre os 0.4 e os 7%.

FACTORES DE RISCO

Podem-se agrupar em:
A) Relacionados com as propriedades do medicamento: devido ao seu baixo peso molecular, muitos fármacos para poderem induzir uma reacção imunológica, necessitam de sofrer um processo de haptenização. Para este processo ocorrer, o fármaco necessita de ser intrinsecamente reactivo (exemplo: penicilina). Outros fármacos requerem a sua conversão num intermediário reactivo (exemplo: sulfametoxazol).
B) Regime de tratamento: os tratamentos intermitentes e repetidos, tal como os tratamentos endovenosos (seguido dos de aplicação tópica), são mais imunogénicos.
C) Relacionados com o doente: A maioria das reacções tende a ocorrer no sexo feminino. As crianças poderão ser menos afectadas, mas os dados são controversos. O papel da atopia é discutido, mas parece ser um factor de risco para a hipersensibilidade aos AINE's e para os produtos de contraste iodado. A existência de determinadas doenças, como por exemplo a fibrose quística e a SIDA, são apontadas como de risco para alergia a medicamentos. A raça negra tem uma maior incidência de angioedema e tosse por IECA's. Não esquecer que existe predisposição genética para alguns fármacos, como por exemplo o abacavir.

FÁRMACOS IMPLICADOS

A alergia medicamentosa ocupa um lugar muito particular dentro da patologia alergológica. Tal deve-se em parte à enorme diversidade de princípios activos, às múltiplas formas de apresentação clínica, à complexidade dos mecanismos subjacentes e à ausência de métodos de diagnóstico rápidos e acessíveis. É importante não esquecer que qualquer fármaco pode desencadear uma reacção alérgica, sendo que uma maior incidência de casos para um dado fármaco pode resultar somente dum maior número de prescrições.

Na abordagem clínica de um doente com alergia medicamentosa torna-se necessário:

1. Caracterizar clinicamente o mais detalhadamente possível o tipo de reacção em causa (se ocorreu síncope, reacção cutânea, queixas gastrintestinais, dificuldade respiratória). No caso de reacção exantemática, avaliar a extensão, o tipo de lesões, sobre a existência de prurido, o eventual envolvimento das mucosas e a existência de linfadenopatias ou de febre.

2. Caracterizar cronologicamente a reacção (quanto tempo após a primeira e a última toma surgiu a reacção). Habitualmente classificam-se em imediatas (as que se instalam na primeira hora após a toma) e não imediatas (as que surgem a partir da primeira hora).

3. Conhecer os medicamentos implicados na reacção adversa.

4. Apurar o contexto clínico em que a reacção ocorreu (infecção, depressão, ...).

5. Conhecer as propriedades farmacológicas dos diversos medicamentos de modo a excluir eventuais efeitos acessórios ou dose dependentes.

6. Registar todos estes dados e referenciar o doente a uma consulta especializada.

Apresentam-se de seguida algumas formas de abordagem das formas mais frequentes de alergia medicamentosa:

Beta-lactâmicos:

Hoje existem recomendações internacionais para a abordagem de alguns dos tipos de alergia a fármacos, como no
caso dos beta-lactâmicos.
Sabe-se que cerca de 80-90% dos doentes que se afirmam alérgicos a um antibiótico beta-lactâmico não o são na realidade. Perante uma história sugestiva, podem ser executados testes cutâneos (prick, intradérmicos e eventuais testes patch) visto encontrarem-se correctamente validados para este grupo. Deve-se ter atenção às concentrações máximas não irritativas e aos critérios de positividade, aceites pela Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica. Nos testes prick faz-se uma leitura da reacção aos 20 minutos. Para os testes intradérmicos deve-se fazer uma leitura da reacção aos 20 minutos e eventualmente às 48 horas. Para os testes patch a reacção deverá ser observada após 48 horas e eventualmente às 96 horas. Estes testes se positivos excluem a necessidade de prova de provocação,
devendo esta reservar-se para o medicamento alternativo (caso os testes cutâneos sejam negativos). Relativamente aos testes intradérmicos, quando executados por médicos especializados, são seguros e apresentam um elevado valor diagnóstico, tanto nas reacções de hipersensibilidade do Tipo I como nas do Tipo IV. Quanto aos testes patch, o valor diagnóstico para as reacções IgE mediadas não se encontra definido. Para as reacções do Tipo IV, os testes patch parecem ser mais específicos mas menos sensíveis comparativamente aos intradérmicos.
O valor da determinação de IgE específica é muito inferior ao dos testes cutâneos, surgindo com frequência falsos negativos.

AINE's / Paracetamol:

Dado a quase totalidade das reacções de hipersensibilidade a estes fármacos serem não IgE mediadas, não existem testes de diagnóstico úteis. Mesmo os métodos mais recentes como a citometria de fluxo, apresentam sensibilidades e especificidades muito aquém do que seria de desejar. Os testes cutâneos não são defendidos pela Academia Europeia de Alergologia e Imunologia Clínica, salvo raras excepções. O método gold standard para o diagnóstico é a prova de provocação. É frequentemente proposto ao doente realizar uma prova de provocação com um AINE alternativo. Esta prova deve ser realizada sob vigilância médica dado a possibilidade de positividade (a reacção a mais de que um AINE é comum). Até a prova ser efectuada, é proposto ao doente que em caso de necessidade utilize somente paracetamol
(caso não seja este o medicamento a que o doente refere hipersensibilidade).

Refira-se ainda que em muitos dos doentes com urticária crónica ocorre um agravamento após a toma de AINE's.

A asma não é uma contraindicação para a toma de AINE's.

Anestésicos locais:

As reacções alérgicas aos anestésicos locais são raras, tratando-se na sua maioria de reacções psicomotoras, vasovagais ou tóxicas. No entanto perante uma suspeita de alergia devem ser realizados testes cutâneos para o látex e eventualmente para os anestésicos locais (anestésico implicado e anestésico alternativo). A prova de provocação constituia técnica de gold standard.

Embora seja difícil de prevenir as alergias medicamentosas, o seu risco de ocorrência pode ser minimizado recorrendo a algumas estratégias:

1) Diagnóstico correcto (com base na história clínica e métodos validados para o efeito).

2) Caso existência confirmada de alergia ou se reacção adversa grave, deve-se evitar a exposição futura e utilizar alternativa terapêutica segura, seleccionada com base da história clínica e eventuais meios de diagnóstico.

3) A pré-medicação (com anti-histamínicos e corticóides sistémicos) é apontada como uma estratégia preventiva em determinados tipos de hipersensibilidade a fármacos, como no caso dos produtos de contraste iodados. Na grande maioria das outras situações, poderá até ser contraindicada, nomeadamente se mecanismo imunológica subjacente.

4) A dessensibilização é uma estratégia possível, caso o fármaco seja indispensável para o doente. É eficaz em situações IgE mediadas (penicilina, cefalosporinas,...) e não IgE mediadas (AAS, alopurinol, cotrimoxazol,...). Deve ser efectuada por médico especialista na área. O efeito da dessensibilização termina dias após a interrupção do fármaco.

Em caso de dúvidas, deverá referenciar o doente a uma consulta de Alergia Medicamentosa disponível na grande maioria dos Serviços de Imunoalergologia.